A mulher como canal que supera paradigmas
Neste mês de março se comemora o dia Internacional da Mulher, este artigo quer a partir de Ester uma grande heroína bíblica, mostrar como a mulher ao longo da história da humanidade sempre teve papel de desprezo e figurou em segundo plano nas sociedades antigas. Contudo, a mulher sempre se destacou como aquela que supera os paradigmas impostos sobre ela, pela cultura patriarcal e antropocêntrica. Essa herança de submissão e de coadjuvante na sociedade é justificada a partir do relato bíblico do mito criacionista cosmogônico, onde opiniões do mundo teológico dão conta da desobediência da mulher à ordem de Deus para que não comesse o fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal. Porém ela come e dá também ao marido.
Deus após fazer o homem, percebeu que algo estava errado, ou seja, que não era bom que o homem ficasse sozinho, então Deus fez também a mulher, para ser sua companheira, para ser sua auxiliadora, para administrar o Éden do lado do homem, uma gestão compartilhada. Caberia ao homem o papel de provedor do lar cultivando o Jardim, de orientador de sua mulher, de defensor de sua companheira, de defendê-la dos ataques do maligno, haja vista, Deus ter passado as ordens ao homem do que fazer no Éden, o homem era responsável por sua companheira, repito ‘responsável por sua companheira’.
Desde então, as sociedades do antigo oriente e as judaico-cristãs, vêm justificando, o porquê de a mulher figurar como personagem frágil e submissa ao homem. Reconheço a autoridade da palavra de Deus em relação ao papel da mulher na família, na igreja e na sociedade. Mas também, reconheço a omissão do homem (Adão), em não obedecer às recomendações divinas, deixando seu bem maior (Eva) à mercê do inimigo, observando tudo de longe, não tomando posição de defensor, nem de protetor ou de orientador de sua herança sagrada, que era sua amada esposa, mas deixou que ela fosse enganada, passada para trás pelo diabo, manchando sua honra.
Muito tempo depois da queda, surge então, Ester que perdeu seus pais ainda jovens, quando ela era uma pequena criança, seu primo Mardoqueu a adotou como filha, ela é simples e pobre, mas são os pobres que se entreajudam solidariamente na narrativa bíblica. Não têm nada, mas sabem repartir tudo, perseveram na própria identidade e fraternidade. Dessa forma a maior e única riqueza que Ester tem são sua beleza e o carinho de Mardoqueu. A beleza de Ester, e seus atributos “conspiram” em favor do livramento futuro de seu povo, condenado ao genocídio pelo Grão-vizir Aman (STORNIOLO, 2003). Ester sai da condição de escrava, cativa e conquistada, pelo Império Persa, graças à ruína de outra grande heroína que é apresentada pela narrativa bíblica, Vasti. Então esposa de Assuero, que se nega atender suas ordens para que dance perante seus convidados, contudo, é banida da posição de esposa e da posição de rainha dos persas. Com isso um “concurso de beleza”, por meio do qual a heroína de classe baixa é obrigada a participar, será o “veiculo” que a levará fazer parte da corte e pertencer à realeza. Pois a melhor arma de Ester é sua beleza e inocência, com traços de sedução e pureza, o que lhe é natural. Contudo, ela se encoraja e se esforça para se tornar rainha da Pérsia, nunca se esquecendo de sua origem humilde (SILVA, 2003).
Na Bíblia, seja na tradição judaica, seja na tradição cristã, Vasti é mal acolhida e não tem sido compreendida de uma forma geral na condição de gênero. Todavia, as abordagens sobre ela e sua história são machistas e preconceituosas. Mas, por quê? Porque se recusou a se apresentar perante o rei Xerxes (para os gregos) seu marido e “senhor”, conforme a tradição da época e, seus convidados, para provavelmente, atender às suas orgias. Onde Xerxes no terceiro ano de seu reinado (482 a.C.) deu um banquete a todos os seus príncipes e servos. Por seis meses o rei exibiu a grandeza de sua corte, tempo durante o qual planejou com os lideres civis e militares a sua proposta invasão da Grécia (o que ocorreria em 480 a.C.). Ao final, o banquete foi regado à bebida, com a duração de sete dias, ao mesmo tempo, a rainha Vasti oferecia outra festa paralela para as mulheres dos convidados reais – visto que não era normal um banquete misto entre esposas e esposos (JOSÉFO, 1990). No último dia da festa, o rei, já bêbado, convocou a rainha à sua presença, presumivelmente para exibi-la de maneira indecorosa perante seus convidados, todavia, ela lhe recusou obedecer; em nome de sua honra e de seu bem-estar moral e psíquico. Para o rei, essa atitude da rainha foi de extrema afronta, pois ela deveria como sua mulher - semelhantemente a um animal de extinção ou a uma de suas concubinas. Obedecer-lhe, por força do curso natural à época. Os conselheiros transformaram a questão numa crise nacional que ameaçava a supremacia masculina. “Um dos sábios pondera a questão, o que a rainha fez foi violar o princípio da autoridade” (STORNIOLO, 2005, p. 23). O gesto não foi apenas contra o rei, mas contra todos os oficiais e todos os súditos que vivem por todas as províncias do rei Assuero - assim chamado pelos judeus. “Como é que vai ficar a fama, a imagem do rei? Ele será motivo de caçoada” (STORNIOLO, 2005, p. 23).
![]() |
| Rainha Vasti |
Assim fazendo, a honra do rei e de todos os homens do império estaria salva. Temos aqui uma visão completamente machista das relações homem-mulher e da psicologia feminina. As ações de Vasti, segundo a tradição persa e judaico-cristã fazem dela uma ameaça ao status quo e ela é “eliminada” por isso. A “rainha banida” é a “esposa banida”. Vasti aqui é a heroína que oferece um modelo particular de sucesso, no qual os opressores se sentiram especialmente á vontade. A oposição às suas atitudes é fortalecedora das estruturas de poder. No entanto, Vasti se torna heroína das causas feministas, ela é uma grande colaboração para se quebrar os paradigmas patriarcais e machistas que ainda estão em voga (SILVA, 2003).
Contudo, quando a honra e a moral, tanto do homem, quanto da mulher, hoje em dia, forem postas a prova, ambos podem preferir “perder status”, mas manter suas honra e dignidade, que lhes são bens íntimos, no entanto, naquela sociedade persa, isso é totalmente fora de cogitação. Todavia, banquete regado com vinho, tem na Bíblia, e neste caso no Livro de Ester, o simbolismo do dom de Deus que alegra e faz fraternidade, Zacarias, 10:7; (ANOTADA, 1994). Aqui, porém, o vinho é “dom” do rei Xerxes para controlar o povo e mantê-lo submisso, nisso inclua sua esposa também. Na tipologia bíblica, o rei ocupa o lugar de Deus, e o banquete do povo acontece por ordem do rei, e não por livre e espontânea vontade do povo (BRENNER, 2003). Quando é que o povo vai poder se banquetear, sem que, para isso, esteja cumprindo ordens? Quando é que o vinho será sinal de alegria e fraternidade? Vasti deu um banquete para as esposas dos convidados do rei, demonstrando sua prestatividade espontânea e independente, estava tentando ser simpática, fraterna e atenciosa com suas súditas enquanto seus maridos estavam com o rei no banquete masculino. Sobretudo, a beleza dessa heroína mostra como, é ter honra, ser forte e fraterno, ser autônomo e responsável em nossas decisões e escolhas, mas nunca se esquecer de dar atenção aos direitos de outrem. Vasti preferiu ficar em seu próprio banquete com suas convidadas, a servir de objeto público de prazeres sexuais do rei e seus pares, já que sua beleza foi o motivo principal para sua ruína. Ela agiu contra uma ordem superior, ela teve personalidade de dizer não, mesmo que perdesse status, mas não sua honra e dignidade (BRENNER, 2003).
Doravante, nossa abordagem se resume ao “salão de beleza oriental” de Susa, onde Hadassa (nome hebraico de Ester, que significa: murta doce e cheirosa), tratou de sua estética, após ser arrebatada der Mardoqueu para o harém preparatório de Assuero. Para que depois de todos os tratamentos de beleza, ela concorresse com as outras para o cargo de rainha. Haja vista, o livro comece dizendo que Assuero estendeu seu reino por 127 províncias que iam desde o Rio Indo até a Etiópia. A vida de Ester se tornou cada vez mais difícil, pois teria que concorrer com cerca de quatrocentas garotas de todo o império (SILVA, 2003).
A proposta de julgar as mulheres por sua aparência física relembra a ordem do rei dada a Vasti, que ela aparecesse diante dos cortesãos para ser admirada por eles. No entanto, as jovens admitidas em sua maioria tinham entre 13 e 17 anos, deveriam seguir uma formação rígida durante um ano ao abrigo do sol, as jovens adquiriam uma tez branca e doce à força de banhos de pó de amêndoas, de óleos e de ornamentos de todo tipo.
Contudo, podemos perguntar qual a diferença entre a exposição da beleza de Vasti, da de Ester e das outras virgens. Todavia, o comentário rabínico não fala das vestes das virgens, nem se elas estavam nuas. O que sabemos é que, ninguém questiona na narrativa bíblica, o que cada uma deveria mostrar no “concurso de beleza”. Parece que Mardoqueu concorda com o fato de Ester se colocar em situação na qual tanto a beleza de seu corpo quanto a de seu rosto serão julgadas. Provavelmente, ela deverá expor-se tanto quanto Vasti, se não mais (STORNIOLO, 2005). O certo é que todas as jovens recebiam um novo nome ou apelido que se identificava com uma qualidade física ou moral. As jovens mais belas eram submetidas a uma formação de concubinas elas aprendiam: música, poesia, técnicas amorosas, a ler e escrever na língua do país, a cantar, costurar, a bordar e etc. (BRENNER, 2003).
Porém, a diferença entre Ester as jovens e Vasti é uma só; Vasti deveria se apresentar em um espaço masculino que teria muitos homens como juízes; Ester e as demais jovens estão em um espaço feminino e terão um só homem como juiz, o rei. Em ambas as ocasiões, as mulheres estão sem véu e expostas a homens com os quais elas não possuem parentesco nem são casadas o que ameaça o senso feminino, de vergonha, ou seja, como elas analisam moralmente a si mesmas (STORNIOLO, 2005). Vasti, não obedeceu a seu marido e evitou sua própria vergonha; por esse motivo ela é banida de sua posição de esposa e rainha, mas também da narrativa do Livro de Ester, pois não ouvimos mais falar dela novamente a partir do capítulo dois. Vasti desaparece da história, agora é Ester que ocupa o primeiro plano. No entanto, a “humilhação sofrida por Vasti marca de fato a ascensão de Ester e o começo de uma história de salvação para todo um povo” (SILVA, 2005, p. 56).
![]() |
| Rainha Ester (Hadassa) |
Provavelmente a beleza de Ester se destacava da das demais moças, pois Ester foi levada para a casa do rei, ou seja, para o harém real. Egeu, o guardião das mulheres agradou-se mais de Ester, que das outras moças. O que ela fez para obter tal favorecimento? Conforme o texto bíblico, nada. Apenas aparece na narrativa do Livro que “a virgem agradou a Egeu e por isso ganhou seu favor” (BRENNER, 2003, p. 67). Todavia, uma mulher para ganhar o “concurso de miss Pérsia”, deveria se alimentar bem, conforme o que fosse necessário para manter a forma física, cor da pele e semblante nos padrões exigidos pelo palácio real. Egeu agradou-se de tal forma de Ester, que lhe deu toda a alimentação necessária, contudo, ela precisava de adornos, ele a deu na medida em que agradasse ao rei, para não ofuscar sua beleza natural, que era o que o rei mais apreciava (STORNIOLO, 2005).
Porém, o concurso das belas jovens além de envolver muita expectativa em torno do belo e toda àquela preparação estética, tinha, também, como finalidade consolar o coração de Assuero, pois ele tinha uma violenta paixão pela rainha Vasti, por causa de sua extrema beleza. No entanto, ele poderia escolher dentre as jovens do harém, a mais bela, para desposá-la, a fim de que o amor que sentia por Vasti diminuísse cada vez mais, até que por fim desaparecesse por completo. Trouxeram-lhe as moças mais formosas, dentre as quais se distinguia Ester, a beleza desta moça, sua modéstia, sua graça era tão extraordinários que atraiam os olhares e a admiração de todos (JOSÉFO, 1990). Ester era portadora de uma beleza que ao mesmo tempo dava um sentimento de alegria e um sentimento de paz. A beleza de Ester era serena e, ao mesmo tempo, estimulante, ela aumentava a consciência do rei Xerxes, no fato de ele estar vivo (JOSÉFO, 1990). Ele a escolheu como esposa e como sua rainha, da um enorme banquete; o banquete de Ester, que nessa ocasião o rei se fez generoso para com todos os convidados, como o costume e a tradição dos persas requeria (SILVA, 2003).
Todavia, Ester viveu neste contexto de desprezo em que eram mantidas as mulheres, “consideradas de musculatura mais flácida que a do homem, da assimetria suposta entre homem e mulher, da sexualidade e, sobretudo, da impureza periódica que a assimilava a seres lunares e maléficos” (QUÉRÉ, 1984). Porém, ela soube contornar as situações embaraçosas e constrangedoras do contexto social, religioso, político e cultural em que vivia a partir da orientação de Deus (SILVA, 2003). Trata-se, porém, de uma mulher linda que agrada ao rei, e ele logo se apaixona por ela. É ai que o rei dá um novo banquete, na narrativa do livro de Ester o quarto, porém um banquete em honra a Ester, a escrava que se torna rainha (STORNIOLO, 2005).
Por fim, seu povo estava condenado ao genocídio, pelo grão-vizir Amã. “Ester então, não revela nem dá a conhecer ao rei sua origem e seu povo” (Et. 2:10, Jerusalém, 1995, p.770). Ester conserva (bem guardado consigo) o seu segredo, essa discrição não é mero fruto do acaso. De fato, desde o começo, Ester manifesta uma grande capacidade de saber esperar o momento certo. Ela não tem pressa. Esconde sua identidade até o banquete decisivo com Xerxes e Amã. Então sua revelação apresenta-se como um elemento essencial da trama. Ao se opor aos judeus, Amã não tem a mínima ideia de agir contra Ester, pois não sabia que ela era judia, seu intento era contra Mardoqueu e seu povo. Todavia, no momento em que tomado de surpresa, descobre a identidade dela, já é tarde demais para rever suas intenções (SILVA, 2003, p. 61).
Mais uma vez vemos uma mulher quebrando paradigmas em nome da fé, em nome da autoridade divina para socorro de si e de seu povo. Todavia, o rei no meio do banquete, disse à rainha que lhe pedisse o que quisesse, pois podia estar certa de obter. Ela lhe conta toda a história de condenação que estavam submetidos, ela e seu povo, Assuero, já havia perdido uma bela esposa, ele se vê na mesma situação. O rei muito se indigna contra Aman e ordena seu enforcamento e a morte de seus filhos, de toda a sua família e agregados (SILVA, 2003). Contudo, antes do dia 13 de Adar, dia marcado para o genocídio dos judeus, o rei escreveu cartas para todas as províncias, para que ninguém atacasse os judeus, mas que vivam em paz com eles, caso contrário, os judeus poderia reagir aos ataques, pois o rei os permitiu se armarem. Chegado o dia, mais de setenta e cinco mil pessoas do império foram mortas pelos judeus, por não atenderem ao pedido de paz do rei Assuero. Ester sobrevive ao massacre e sua beleza encantadora, sua ousadia em quebrar paradigmas entrando na presença do rei sem ser chamada, a leva ao trono, salvando, também, seu povo (JOSÉFO, 1990).
Hoje, em tempos pós-modernidade a mulher ocidental tem conquistado a benção de ser atuante na sociedade, a mulher hoje pode ser sim chamada de auxiliadora, antes não; ela era somente uma coadjuvante, uma comparação entre os dois sexos não concorreria de modo algum a favor daquele que é considerado forte, pois este se omitiu em sua proteção no Éden e depois a acusou de erro (QUÉRÉ, 1994). Acredito que Deus ao longo dos anos tem quebrado a maldição do Éden laçada sobre a mulher, dando-lhe o direito de atuar ao lado do homem. Parabéns mulheres de Deus, vocês são bênçãos em nossas vidas, feliz dia Internacional da Mulher.
Veja alguns vídeos em homenagem à mulher:
Professor Nilton Carvalho é Historiador, Especialista em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), Teólogo e mestrando em Ciências da Religião.
ndc30@hotmail.com;
http://www.palavradevidaemcristo.blogspot.com/;
http://historiaeculturandc.blogspot.com/;
http://twitter.com/#!/profnilton07
Referências bibliográficas
ANOTADA, A Bíblia. The Ryrie Study Biblie, versão Almeida, Revista e Atualizada, com introdução, esboço, referências laterais e notas por Charles Caldwell Ryrie. Tradução Carlos Oswaldo Cardoso Pinto. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
BRENNER, Athalya. Ester, Judite e Susana a partir de uma leitura de gênero In: Athalya Brenner (Org.); tradução de Rosangela Molento Ferreira. São Paulo: Paulinas, 2003. (Coleção A Bíblia, uma leitura de gênero).
JERUSALÉM, A Bíblia de. Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais da língua francesa: Les Editions Du Cerf, Paris, 1973, ed. Revista e aumentada, publicada sob a direção da École Biblique de Jerusalém. Cedida à Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus. Ed. Paulus 1973, edição revista e atualizada, 1995.
JOSÉFO, Flavio. História dos Hebreus. Tradução Vicente Pedroso. Rio de Janeiro: CPAD, 1990.
QUÉRÉ, France. As mulheres do Evangelho / France Quéré; tradução M. Cecília de M. Duprat. – São Paulo; Edições Paulinas, 1984.
SILVA, Aldina da. Ester: crônica de um genocídio anunciado / Aldina da Silva com a colaboração de Michel Lassad; tradução Euclides Martins Balancin. – São Paulo: Paulinas, 2003. – (Coleção Bíblia na mão do povo).
STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro de Ester: o poder a serviço da justiça. 2º edição / Ivo Storniolo; São Paulo: ed. Paulus, 2005 – (Série “Como Ler a Bíblia”).







Nenhum comentário:
Postar um comentário